sexta-feira, 18 de junho de 2010

1922

Acordou cedo. Aceitou a chuva. Saiu para a rua. Aqueles malditos pingos na lente dos óculos. A lente suja, a visão encurta. Na televisão, o futebol. A informação não dizia respeito a nenhum pênalti perdido, nenhuma intervenção de jornalista, nem a temperatura. O dedo pulsa, dói. Ele me fez enxergar outro mundo. Rumo. Intenso. Poético. Político. Seus ciclos. Nossos ciclos ao ler seus escritos.

Meu primeiro contato foi distante e ao mesmo tempo com uma onipresença mágica. Naquela madrugada líamos um dos seus livros com o corpo embebedado de escritos, palavras e risos que se soltavam naquele lugar ímpar. Era para surgir aquilo que éramos incapazes de dizer, mas de sentir igualmente, talvez o que ele queria sentir. O ano de 1922 está estampado naquela camiseta com flores e poesias. Absurdos. Irônicos. Coisas. Vida.

Encontrei-me com ele, pela primeira vez, nem lembro o ano, mas lembro-me das revoluções que se fizeram. Ao sorrir, ao calar, ao viver. Ao me imaginar quase sem fôlego lendo em voz alta, rodopiando pelo quarto, outra vez aqueles escritos. Era a inspiração. Ele misturava meus pensamentos com os de outros tantos escritores. José Saramago. Mil novecentos e vinte e dois. Foi-se tirar o fôlego de anjos e fazer enxergar mesmo quando tudo parece fosco, sem cor, sem brilho, ponto final.

“Acordou com a sensação aguda de um sonho degolado e viu diante de si a chapa cinzenta e gelada da vidraça, o olho esquadrado da madrugada que entrava, lívido, cortado em cruz e escorrente de transpiração condensada”.

“O ditador caiu duma cadeira, os árabes deixaram de vender petróleo, o morto é o melhor amigo do vivo, as coisas nunca são o que parecem, quando vires um centauro acredita nos teus olhos, se uma rã escarnecer de ti atravessa o rio. Tudo são objectos. Quase”.

José Saramago in Objecto Quase.

Um comentário:

FaBeltrami disse...

...chove em meu rosto! Lindo de saudade!